segunda-feira, 17 de outubro de 2016

A BELEZA DAS RODAS DE MULHERES: UM GRITO DE LIBERDADE!


A BELEZA DAS RODAS DE MULHERES: UM GRITO DE LIBERDADE!
26 • 08 • 2016 | por Palmira Margarida

É hora de silêncio, o tambor da irmã bate forte, o cheiro de palo santo invade a alma. É hora de entrar em roda e em conexão com nossas memórias de mulher, não só as nossas, mas de todas as outras que ali estão. Será tudo coletivo, eu tenho certeza, porque ninguém entra numa roda sozinha. Já sentadas, na terra batida ou nas esteiras de palha, nos reconhecemos na dor e na profundeza de cada olhar trocado. São aqueles olhares que só quem leu ‘Cem anos de solidão’ ou passou por longos desertos é capaz de compreender. Porém, no fundo desses profundos olhares com cheiro de metal gelado, eu também consigo reconhecer uma força incrível em que pássaras fortes voam e uma onça, ora mãe, ora amante hipnotiza-me. Nesse momento, eu falo para mim mesma: eu também sei, irmã! Todas nós sabemos! É a mulher primária que pulsa dentro de cada uma de nós, dando boas-vindas e gritando: eu quero sair! Eu preciso viver!

Essa mulher que precisa viver sem culpas e autopressão pode expressar-se de muitas formas e em qualquer lugar, ela não tem preconceitos, porque, no primário, lá na terra batida, não há julgamentos! Pode ser em uma casa xamânica, em uma reunião das moças da igreja, em um simples jantar que você oferece para as amigas ou no café com a colega que precisa muito conversar. Para o sagrado feminino se manifestar, não há regras, pois a deusa também é onipresente, onipotente e vem nos visitar em várias facetas. Não há roda mais especial que a outra, não há um modo certo de fazer uma roda ou encontro de mulheres, o que há, de verdade, é cumplicidade, acolhimento e olho no olho. É isso que faz o sagrado feminino, esse nome tão banalizado, tocar o coração de uma mulher em apuros, depressiva e desistente da vida, dizer: eu vou sair dessa situação! Eu vou me reencontrar! Eu estou sentindo um chamado!

Muitas mulheres me procuram e dizem: “Eu vi as fotos de uns encontros que você fez, eu não ligo para essas coisas, mas senti algo estranho, um ímã me puxando.” Isso é um sinal de que você foi tocada pela sua mulher primária. Como historiadora, estou chamando de mulher primária o arquétipo da fêmea anterior ao sistema de crenças patriarcais, a mulher livre e desconhecedora de autoculpabilização, exatamente o que Clarissa Pinkola Estes chama de “Mulher Selvagem”: a mulher que sente o pulsar do coração a cada momento e sabe para onde ir, a mulher que tem na ponta do nariz o farejar do caminho, as vísceras intuitivas e a presença de espírito.

Na nossa memória de mulheres, há muita culpa, opressão e inferiorização, e esses sentimentos foram semeados em nós (e também nos homens) junto a um processo histórico patriarcal que, para desfazermos, será preciso revolver as terras de nossas ancestrais, reverenciá-las e entregá-las de volta, ressignificando as crenças que nos limitam como fêmeas, libertando todas nós. É assim, fazendo este trabalho entre mulheres, tecedoras de suas próprias histórias, que aceitamos nossas memórias, porém não mais presas a elas, e, sim, sendo donas vorazes e amorosas de nossos próprios caminhos. Há uma frase entre os historiadores que eu gosto muito e tornou-se meu talismã na profissão: “A história acontece primeiro como tragédia, depois, se repete como farsa”.

Nós não seremos uma farsa de nossas próprias dores, nós seremos, sim, realizadoras de nossa própria história, nós escreveremos, juntas, uma outra forma de vida, não só para nossa espécie, mas para todas as outras, e não seremos mais mantenedores de tragédias.

Mas como uma roda acontece?

Respeito: cada uma tem o seu tempo.

Como já escrevi, não há modos nem regras, apenas sentimentos, que devem ser recíprocos. Rodas de mulheres são portais que se abrem por algumas horas e, ao retornarmos deles, somos nós mesmas, porém diferentes, como dizia Clarice Lispector. Esse diferente é o mergulho em si mesma, a descoberta da mulher selvagem e liberta ligada às vísceras da terra. É neste lugar-tempo que reconhecemos nossa força e amor-próprio, honramos nosso passado e renascemos.

Coletividade: estamos todas interligadas.

Mulheres precisam entrar em roda pois necessitam rever e reconhecer a força de suas vísceras e das coroas em suas cabeças. Necessitamos contar para as mais jovens sobre a velha sábia Baba Yaga, Pachamamae Sheela Na Gig (por todas as deusas, você conhece o poder de uma Sheela Na Gig? Por favor, moça, conheça!). Precisamos contar para as mais velhas sobre Oxum Opará e Artemis, precisamos misturar tudo e trocar, pois cada mulher carrega em si um poder e uma face da deusa. A opressão só chegará ao fim se nos reencontrarmos com nosso poder e, principalmente, reconhecermos o poder umas das outras.

Humildade: somos todas poderosamente iguais.

Para estarmos em, roda é preciso também humildade. Necessitamos entender que todas já são coroadas e, por isso, não sou muito adepta do termo “empoderadora de mulheres”, prefiro falar “irmã auxiliar”, “irmã ajudante”, “soror do caminho”, pois ninguém empodera ninguém, o que fazemos é um grande espelho e irmandade para que todas possam se reconhecer em igualdade. Cada mulher em roda é uma faceta da deusa. Não é à toa que são aquelas mulheres que estão contigo naquele momento sagrado. Todo encontro de mulheres é sagrado e uma troca irrecusável.

Entrega.

Agora, ao silêncio do tambor de minha irmã, sentada nesta esteira de palha, em frente a este altar, já tendo inspirado e expirado calmamente, esquecido do mundo lá fora, olho para cada uma delas, atentamente, vejo um pouco de mim em cada suspiro e suor, me reconheço em cada gota salgada de lágrima. Ao meu lado, uma Freya, do outro, Oeste, à minha frente, uma Inanna, paralelas, uma Shakti, uma Kali. Não importa, agora sinto, somos todas deusas! Somos todas aquilo que quisermos ser!

Então, deusa, você acabou de ler o primeiro artigo da ‘Trilogia do Sagrado Feminino’. Nas próximas duas semanas, vamos mergulhar ainda mais nesse mundo, munidas de muita antropologia, filosofia e história, mas com uma linguagem acessível para todas. Um abraço de baunilha e até a próxima!

FONTE: Vertigem

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